Um certo Porto

O que faz correr um escrevinhador de crónicas e outras ninharias, indígena da Vitória e assumido tripeiro, é encontrar ressonâncias do que diz, nos momentos mais inesperados. E dado que melhor do que a realidade virtual informática e a comida de plástico da escrita chamada SMS ou mail são, no meu ver conservador (e, quando não, reaccionário), cartas escritas à mão, na última fronteira da humanidade bárbara anterior ao choque tecnológico, transcrevo passos de uma, há dias recebida: «Sou leitor compulsivo do J.N. e, através dele (…), identifico-me pessoalmente com a sua luta contra o centralismo aberrante e até criminoso com que o país se confronta.»

Depois de outras considerações, o correspondente junta versos de uma senhora representante dos anónimos, estranhos, entranhados e devotados amores dedicados a esta cidade, que gostaria de ver dados à estampa «no nosso J.N.». A verdade é que, após mais de meio século de destruições no seu tecido urbano e de atentados contra o sentido profundo da sua alma (que, apesar de tudo quanto dizem os tecnocratas de meia tigela, as cidades têm-na), o Porto permanece evocador de paixões, desencadeador de emoções, motivador de sentimentos. Como se verifica neste tão sensível e delicado quanto impressionista poema: «Aqui, onde hoje estou, nesta cidade / Deus plantou flores em cada canto, / Pintou de azul o mar e ao céu deu claridade / Mas estendeu também da neblina o manto… Em certos dias, / Apenas os contornos se apercebem / De vultos friorentos, caminhando / Ruas cinzentas, sem olhar ninguém, / Da realidade fantasmas desenhando… / Mas, eis que o sol rompe esse manto denso / Espero ver surgir, em brilhos paralelos, / Esta cidade linda, o meu Porto intenso, / Toalha bordada em matizes belos, / Tela de pintor apaixonado, / Quadro na nossa memória bem gravado… / Surpreendida, não reconheço o meu espaço, / O meu corpo é envolvido por um frio de aço. / Sinto-me invadida por um desgosto imenso… / A minha cidade já não é o que eu penso: / Um Porto cheio de energia e de cansaço. / Poderosa varinha de condão o vem transformando / Num pesadelo de pedra amontoado / Sem história, sem rosto, sem regaço… // E só encontro saudades do passado.»

A portuense emotiva chama-se Maria Paulina de Sousa. Nostalgicamente procura guardar da cidade intemporal, que (nos) parecia eterna, os factos perduráveis que a memória retém. Simbólicas, contraditórias, efusivas, às vezes desencantadas mas sempre despertas para esta realidade envolvente chamada chão das nossas raízes, eis as vozes escondidas na cidade. As vozes, como dizia D. Etelvina, ribeirense indefectível, daqueles que normalmente não têm voz. E que, pela sinceridade da sua relação com a realidade, merecem, não raro, mais tempo de antena, letra impressa e atenção do que muitos que (não) se fartam de falar e falam de uma cidade (e de um país) que só existe nas páginas amarelas. Estas são as vozes que sentem a Cidade com afectos e não com providências cautelares.