Um Milagre

Nanja que eu pertença à comandita que nega a importância da tecnologia e dos avanços da ciência. Pelo contrário, além de utilizar intensamente o electrodoméstico chamado computador por razões de trabalho, vivo e dependo de modernidades tecnológicas. Carrego comigo um artefacto que me põe o coração como novo e já me salvaram enfiando-me no corpo isótopos radioactivos. Sou, portanto, um produto da terna cumplicidade de meus pais e um subproduto da revolução científica.
Mas confesso que gostei quando, no meu Instituto, ouvi o Prof. Sobrinho Simões (provavelmente o nosso maior cientista) dizer que não possuía telemóvel. Eu uso-o, só para o dia-a-dia, já que, com os pontos, o utensílio me custou 35 Euros e dá para falar e ouvir e o essencial. Por isso, nos autocarros, fico abismado com o ambiente digital generalizado. “Smartphones”, “tablets” e “smart whatches” são às dezenas manipulados por jovens, menos jovens e muitos já na reforma, clicando bravamente, falando para um fio, vendo imagens, absortos, de olhos fixos no computador de mão que os liga à realidade. Em êxtase, de pé, sentados e encostados. Entram e saem manipulando o instrumento.
Há dias, porém, viajava no 200 e aconteceu algo quase impossível: ilusão, fantasia, alienação, absurdo. Ou milagre. Num assento ao lado, um rapaz lia um livro. Um livro! E, ó surpresa, de contos! Devia dar-lhe os parabéns mas, pensando bem, era melhor avisá-lo de que, com as câmaras de vigilância, ainda se arrisca a ser acusado de terrorismo contra a sociedade digital ansiada. É preciso desplante: ler um livro em pleno reino dos telemóveis!

~ por Helder Pacheco em 2023-12-24.