06.12.2022

•2022-04-18 • Deixe um Comentário

A Ternura

•2019-03-10 • Comentários Desativados em A Ternura

As flores silvestres – e tão imprecisas – crescem, nestes campos inundados de vento. Quem irá colhê-las, estender as mãos, fechar os olhos e dizer palavras menos usuais?

Helder Pacheco, excerto de “A Ternura”, in “Os Dias Comuns”, 1990.

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Livros disponíveis em Edições Afrontamento.

•2024-03-09 • Deixe um Comentário

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Gratidão

•2023-12-24 • Deixe um Comentário

Em 17 de Janeiro de 1989, publiquei a primeira crónica no JN. Há trinta e quatro anos. Uma eternidade (o tempo corre a galope!). A crónica chamava-se “A Pedra da Mentira”, descrevia uma tradição pagã altoduriense e a secção do Jornal que me abrigava tinha o nome de “Vistas do meu Quinteiro”. Dele, um portuense, via e comentava o país (era um romântico!). Nesta secção estagiei, escrevendo à tripa-forra, pois não havia caracteres mas apenas palavras.
Na mudança do século, passei a integrar o “Passeio Público”, com mais disciplina e menos palavras, a caminho dos 1600 caracteres. Não obstante, disse tudo o que sabia e o que não sabia. Citei, reproduzi e inventei (não factos mas, sobretudo, pilhérias). Descrevi situações e contei o que me contaram (às vezes, anónimos que me abordam na rua). Elogiei o que achava bem e critiquei o que achava mal. Cultivando o meu quinteiro no prazer da santa independência. Fiel a dois valores: o orgulho de ser portuense e a condição de ser português, com a atitude de um «optimista melancólico» (Jean d’Ormesson).
Foi com enorme surpresa que recebi a homenagem que me foi prestada pelo JN, na altura do seu 135º. Aniversário. Surpresa, contentamento e gratidão. Quando saí da cerimónia e esperava o autocarro, no Carmo, um senhor que lá estava perguntou se eu era eu e que me reconhecia do JN, que lia diariamente. É por isto que gostava de escrever até aos 150 anos do jornal. Mas como não vai ser possível e acredito em três princípios: progresso, ciência e democracia, vou tratar de arranjar um CHATGPT que me possa substituir na tarefa, quando for embora.

Memórias

•2023-12-24 • Deixe um Comentário

Nasci numa casa oitocentista da velha Rua do Correio, a coisa de 50 metros, da de Avis que ainda tinha o nome de Travessa da Fábrica. No lugar do edifício do Infante de Sagres, estava a Casa da Fábrica, mandada construir pelo rico comerciante Luís António dos Santos e Freitas e que, em operação de ilusionismo urbano, desapareceu até à última pedra. Enquanto crescia, assisti à construção da Praça Filipa de Lencastre e à abertura da Rua de Ceuta. O Porto vestiu assim roupagem nova e esqueceu a antiga Zona dos Lavadouros.
Nos meados do século XX, na esquina da Rua de Avis com a da Fábrica do Tabaco, o homem bom e prestimoso cidadão Manuel Camanho (descendente da família de emigrantes galegos que, no séc. XIX, fundaram um reputado café da Praça de D. Pedro), abriu uma notável livraria e editora. Dela saíram livros, manuais e materiais didácticos que procuravam arejar o sistema. Nos inícios dos anos 70, quando as reformas se vislumbravam, a Livraria Avis ficou ligada à inovação editorial que as mudanças pedagógicas exigiam – sem esquecer a sua vocação de loja de livros.
Tragada na voragem do despovoamento e destruição cívica, a Avis não resistiu à hecatombe que quase transformou o Centro do Porto em terra-de-ninguém. Para mim, para quem o sítio é chão natal, passar pela esquina da Rua da Fábrica e ver a desolação em que se transformara a livraria do sr. Camanho, era uma afronta. Até que, com o processo de reanimação da Baixa, a esquina se animou. Confesso que, quando vejo tapumes, operários e sinais de obras nas ruas do Porto, é como se me injectassem uma dose de esperança.

No Montebelo

•2023-12-24 • Deixe um Comentário

Agosto é mês festeiro e Setembro não lhe fica atrás. Só no Porto, onde o turismo não vai, acontecem três festas: a Santa Clara, à Senhora de Campanhã e à que não esmorece Nª. Sª. do Porto.
A persistência destas tradições na Cidade Oriental, deve-se à vontade de Comissões activas e de párocos atentos aos desafios da transição entre o passado e o presente das suas comunidades. Enquanto isso, o «cair da folha» (velha expressão da Sé, designando o início do Outono) traz-nos a Festa da Senhora do Ó, em S. Nicolau. (Em crónica anterior, esqueci-me do Senhor da Boa Fortuna, na Vitória.)
As festividades à Senhora do Porto (aparentemente fora do sítio, pois tem a paróquia em Ramalde mas, ali, a morte da festa foi uma história triste), é milagre de resistência do antigo bastião operário de Montebelo. E de perseverença da Confraria do Senhor Jesus da Boa Vista, para, durante quatro dias, consagrar a imagem (segundo a lenda, salva da embriaguez de um soldado napoleónico) e organizar a Festa, com programa de arromba, aproveitando a nesga de espaço deixada pelo acesso ao túnel. Previa actuações dos Cavaquinhos do Bonfim, dos Rancho Folclórico do Porto e do Grupo de Dança de Zebreiros, além de cantores de música ligeira e do Combo da Escola de Música do Bonfim. Este ano, no domingo da Festa, não saiu a Solene Procissão. Seria acompanhada pela Banda Musical de S. Martinho do Campo, mas o mau tempo estragou tudo.
E aqui têm como, sem metafísicas e libertos de ayatolas culturais, estes portuenses mantêm o apego à cidade e a (con)vivência de vizinhança que se recusa a perder a alma.

Obras

•2023-12-24 • Deixe um Comentário

Já nem posso ouvir falar dos malefícios, ruídos e transtornos. Um rol de queixumes ampliado por quem vê, nas obras do Metro, na Baixa, uma agressão ao ambiente portuense.
É pena aquele estaleiro gigante a desfear a Praça, mas não há outra maneira de construir o progresso e melhorar a cidade. Ao menos isto, porque algumas obras foram retrocesso e pesadelo. À frente de todas, a Avenida da Ponte. Além de destruir 1/3 do Bairro da Sé, subverteu o espírito do Corpo da Guarda e de S. Sebastião e arrasou a Cividade e o seu património. Deixou uma pedreira monstruosa que, mais de meio século depois, permanece como ferida aberta no coração do Burgo. Para nada. Respeitar a cidade seria construírem, como na Ribeira, um túnel, de S. Bento à Ponte. Esta obra foi a pior a que assisti, durante os meus dias.
Outras, melhores, aconteceram: a Praça Filipa de Lencastre e a Rua de Ceuta (felizmente não seguiu até Carlos Alberto) e, mais tarde, o seu túnel. E o que sofremos para a construção dos parques subterrâneos dos Leões e Carlos Alberto? Assinava o ponto na Livraria Vieira e acompanhei-a passo a passo. Aqueles buracos metiam medo. Mas tudo passou e deixou a cidade impecável. Do Arquivo Histórico, olhava o buracão do Infante e pensava que ia tudo (com a estátua) abaixo. Nada disso. E por aí fora. Venham obras (tenho pena de o túnel falado das Virtudes a S. Domingos não ter avançado e, sobretudo, o de Gonçalo Cristóvão).
Enfim, se queremos melhor futuro para o Burgo e os nossos netos, suportemos as convulsões da Baixa (em nada comparadas com o arrasamento do Laranjal, para abrir a Avenida).

Oporto Sunset

•2023-12-24 • Deixe um Comentário

Quando li a notícia, dei um pincho: em 13 de Setembro Woody Allen vem tocar ao Porto, integrado na “New Orleans Jazz Band”! Que surpresa! E embora, como clarinetista, Allen seja um génio a realizar filmes, a verdade é que ouvi-lo e vê-lo, acompanhado de orquestra, é um acontecimento. E, não sendo caso para embandeirar, coisas destas também colocam o Porto nas bocas de quem sabe.
A notícia excitou-me a imaginação: Woody Allen é autor de um dos meus filmes de culto, “Os Dias da Rádio”, e, em entrevista recente, explicou ter realizado alguns (quase sublimes) apoiados, subsidiados e pagos, em cidades que viram subir a sua projecção internacional (nem precisavam disso). E, nem falo de N.Y., mostrada ao mundo pelo lado mais fotogénico, em que ele é perito.
Simples indígena da Vitória venho, por isso, propôr à Ilustríssima Câmara do Porto que, aproveitando a vinda de Allen ao Burgo, lhe mostre, da mais bela cidade que jamais viu, o entardecer do Palácio ou do Jardim do Morro, a Ribeira e a Ponte, a Rua das Flores, o Passeio Alegre, o Centro Histórico de Gaia, etc. E depois de lhe revirar os olhos, propor-lhe (mediante pagamento) realizar um filme na Invicta, com os seus actores habituais (e alguns daqui). Adaptando títulos consagrados, como “Midnight in Oporto”, “Vicky Christina Porto”, “Miragaia Murder Mystery”, “Bullets Over Nevogilde”, “Oporto Stories”, “To Oporto with love”, “Dragon Ending” ou “A Rainy day in Oporto”. Com enredos originais. E, pagando um extra, poderia até adoptar um título específico (“Oporto Sunset”, ficava-lhe bem). Aqui fica, pois, a minha proposta.

O S. Bartolomeu

•2023-12-24 • Deixe um Comentário

Agosto é mês festeiro no Burgo. Sem esquecer o passado – em que havia mais de uma dúzia – permanecem três festas. A simples e sincera a N.ª S.ª do Calvário, no Porto perdido dos confins de Campanhã. E as duas romarias: à Senhora da Saúde, em Paranhos (que nasceu rústica e se urbanizou com a modernidade) e ao S. Bartolomeu, na Foz.
Este é um caso à parte na cidade. E na vida da gente, que o vivemos colectivamente. Em tempos de individualismo, exposto em «selfies», incomunicação (cheia de comunicação), solidões, indiferença e exibicionismo digital, nestes tempos de controvérsias, desenhar, modelar, recortar, coser, urdir 500 vestidos de papel para desfilar e desfazê-los depois nas águas do mar, exorcizando o mafarrico, convenhamos: é obra.
É obra de persistência, paixão, entusiasmo e dedicação a uma causa chamada resistência cultural, sentimento e persistência da memória. A dimensão e o significado desta que Hobsbawm definiu como «tradição inventada», justifica a sua candidatura a Património da Humanidade. Oxalá os empatas do costume não armadilhem tal desígnio. E, através dos seus trajos, o cortejo fozeiro merece lugar de relevo no futuro Museu da cidade, por representar um fenómeno social em evidente ascensão.
Só um reparo: a admirável e sobrevivente Banda Marcial da Foz abrilhantou o cortejo e brindou os assistentes com uma exibição de quinze minutos, que começou com o «Cheira bem, cheira a Lisboa» e prosseguiu com uma raposódia de músicas da capital. Por amor de Deus! Toquem chulas, malhões ou os Beatles, mas rejeitem a colonização. Em nome do S. Bartolomeu, chega!

Quinze

•2023-12-24 • Deixe um Comentário

A freguesia era a componente essencial da personalidade do Porto. Mais do que divisões administrativas, as antigas paróquias foram o esqueleto da sua identidade, enraizada em modos de viver, diferentes e complementares. O carácter da cidade assenta nessa originalidade.
Até 1583, existia uma única paróquia, a Sé, que o Bispo D. Frei Marcos desdobrou, criando S. Nicolau e Vitória. A sua expansão, ultrapassando a Muralha, integrou Miragaia. A partir do séc. XVII, o Burgo extravasou dos seus limites, formando a freguesia de Sto. Ildefonso. Em meados do séc. XVIII, o Porto era constituído por sete freguesias, incluindo Cedofeita e Massarelos, num ambiente meio urbano e meio rural.
Por Decreto de Passos Manuel, em 1836, Campanhã, Lordelo e Foz do Douro foram integradas na cidade. Em 1837 seria anexada Paranhos e, em 1841, outro Decreto criava a freguesia do Bonfim. Em 1895 foram incorporadas Nevogilde, Ramalde e Aldoar. O Porto ficaria delimitado pela Estrada da Circunvalação (abrangendo ainda Azevedo e Asprela).
Verificamos, assim, que só no séc. XIX o território tripeiro ficaria consolidado com a integração de oito freguesias, que, aos poucos, se foram interligando entre si. Mantiveram, no entanto, um carácter próprio, onde se observavam os traços de «quatro cidades», personificadas nas freguesias onde tudo começou, nas da sua extensão urbana, nas de fundo rural e nas Atlânticas.
Este é o Porto. O autêntico, que os instrumentistas do EXCEL perverteram a seu bel-prazer e contra-natura. Por mim, continuarei fiel às heranças que moldaram o ser portuense, falando das quinze freguesias.

Tony, Good bye

•2023-12-24 • Deixe um Comentário

Jorge Luís Borges escreveu: «Somos o tempo.» Eu, sem me querer comparar, acrescentaria que estamos no tempo. Vivemos nele e, de repente, foge-nos.
Ademais, é o guardião de quanto acumulamos: alegrias,desgostos, vitórias, derrotas, ambições, desencantos, esperanças e frustrações. Tudo se encontra no arquivo dos dias. Mas, guardião insidioso, é também o ladrão da nossa vida, da infância ao entardecer. Até à noite que, subitamente, nos assalta. Tudo vamos deixando para trás. Como os amigos que partiram.
Levou-me quase todo o património. Sem remissão. Começou, há 50 anos, com o Escultor Brito Mesquita e não mais parou: Luís Lousada Soares, Emílio Peres, Álvaro Ferreira Alves, o Senhor João Alfaiate, o Dr. Pimenta, a Ilda e o Vasco Morais Soares, Albano Martins, João Semedo, Jorge de Melo, Luísa Dacosta, Manuel Magalhães, Miguel Veiga, João Duarte, Élio Terrível, Rebordão Navarro, Júlio Couto, Benjamim Veludo e, há dias, a Maria Aurora.
Perdi agora um amigo especial, dos que nos enche as horas com a felicidade efémera mas consistente: Tony Bennett. Através das canções, ofereceu-me momentos de absoluto deleite, prazer e tranquilidade. Vi-o e ouvi-o, há 30 anos, no Royal Albert Hall. Fiquei freguês. Há quase 20 anos, ouvi-o no Europarque, na Feira. E, há talvez uma dúzia (o tempo voa, «time flyes», cantava), na ExpoNorte. Sempre euforico, como se o seu tempo não contasse. Puro engano, afinal contava e, para nosso desgosto, extinguiu-se.
Numa canção, dizia Tony que dele tinham sido todas as boas coisas da vida («The Good Things in life were all mine». E repartiu-as connosco.

Uma Vida

•2023-12-24 • Deixe um Comentário

Se querem saber quanto custa a vida a quem quer viver com dignidade, vejam este currículo no feminino: nasceu na Sé e aos doze anos foi tomar conta de uma idosa, na Viela do Anjo (um ano). Entre os treze e os quinze, tentou «fazer o Ciclo Preparatório», na Escola Pires de Lima. Debalde. Aos quinze, fez-se ajudante de cozinha na “Taberna Doce”, no Bonjardim. Aos dezassete, abriu o seu próprio café, na Rua Escura (durou um ano). Aos dezoito, serviu ao balcão numa confeitaria dos Clérigos. Aos vinte, à mesa num restaurante em Cedofeita, do meio-dia às 4.30. Das 6,30 às 10.30 era mulher de limpeza no Imperial.
A partir dos vinte e dois foi ajudante de cozinha na “Brasileira”. Aos vinte e cinco, ficou desempregada. Aos vinte e seis arranjou trabalho no “Supermercado Tómita”, no Campo 24 de Agosto, e a separar carga no armazém da firma até aos vinte e nove anos. Saiu para os “Armazéns Oriente 2000” de artigos para «lojas do euro», em Justino Teixeira. A seguir, trabalhou num armazém de comida para animais. Mas era pesado e não aguentou.
Aos trinta, trabalhou no café “Pão Doce”, em Barão de Forrester. Aos trinta e três passou a empregada doméstica da filha do dono do café (nove anos). Aos quarenta, ficou desempregada e aos quarenta e dois, foi trabalhar para Nevogilde, apoiando uma criança com paralisia cerebral. Acabado o Fundo de Desemprego regressou à casa da sua ex-patroa, onde permaneceu três anos. Desde 2017 é cuidadora de pessoas idosas. Pelo meio, casou, tem uma filha e uma neta e ficou viúva aos trinta. Em jeito de resumo, diz que levou muitos tombos mas levantou-se sempre.

Um Milagre

•2023-12-24 • Deixe um Comentário

Nanja que eu pertença à comandita que nega a importância da tecnologia e dos avanços da ciência. Pelo contrário, além de utilizar intensamente o electrodoméstico chamado computador por razões de trabalho, vivo e dependo de modernidades tecnológicas. Carrego comigo um artefacto que me põe o coração como novo e já me salvaram enfiando-me no corpo isótopos radioactivos. Sou, portanto, um produto da terna cumplicidade de meus pais e um subproduto da revolução científica.
Mas confesso que gostei quando, no meu Instituto, ouvi o Prof. Sobrinho Simões (provavelmente o nosso maior cientista) dizer que não possuía telemóvel. Eu uso-o, só para o dia-a-dia, já que, com os pontos, o utensílio me custou 35 Euros e dá para falar e ouvir e o essencial. Por isso, nos autocarros, fico abismado com o ambiente digital generalizado. “Smartphones”, “tablets” e “smart whatches” são às dezenas manipulados por jovens, menos jovens e muitos já na reforma, clicando bravamente, falando para um fio, vendo imagens, absortos, de olhos fixos no computador de mão que os liga à realidade. Em êxtase, de pé, sentados e encostados. Entram e saem manipulando o instrumento.
Há dias, porém, viajava no 200 e aconteceu algo quase impossível: ilusão, fantasia, alienação, absurdo. Ou milagre. Num assento ao lado, um rapaz lia um livro. Um livro! E, ó surpresa, de contos! Devia dar-lhe os parabéns mas, pensando bem, era melhor avisá-lo de que, com as câmaras de vigilância, ainda se arrisca a ser acusado de terrorismo contra a sociedade digital ansiada. É preciso desplante: ler um livro em pleno reino dos telemóveis!

Vender o Ar

•2023-12-24 • Deixe um Comentário

O clássico Nuno Marques Pereira, no seu “Compêndio Narrativo do Peregrino na América”, de 1728, escreveu «Confesso humildemente, amigo leitor, que pasmo e me admiro.» Vivemos, de facto, num país onde, além de tudo ser possível de acontecer, já nada nos pode surpreender, admirar, espantar, entre o muito bom e o péssimo. Mas, confesso, mandaram-me, por email, uma reportagem que me assombrou. Nada mais, nada menos do que um empresário vendendo a turistas (falou em japoneses e alemães) ar de Fátima e de Lisboa, enlatado e anunciado em português e inglês. E preparava-se para enlatar ar do Estádio da Luz para os apaniguados (ignoro se o projecto foi avante, mas teria compradores).
Face ao exposto, pus-me a pensar: se interessa às cidades facturarem à custa de seus recursos, sem venderem a alma, por que não exportar o ar do Porto? É de qualidade, pois, quanto a isso, basta estar longe do Terreiro do Paço, para ser respirável e, sobretudo, saudável. Assim, aqui deixo algumas sugestões a possíveis empreendedores: o ar recolhido, durante a noite, no Marquês, será apropriado a idosos acima dos oitenta (com certificado de garantia). O ar do Passeio Alegre, recolhido em bons poentes, destina-se, pelo teor romântico, aos cheiros de casais desavindos. O ar do Palácio, na Av. das Tílias, é aromático e saudável para pulmões frágeis. O ar do Dragão servirá para animar jogadores em baixa de forma. O ar do Quarteirão das Cardosas destina-se aos bota-abaixistas, para respirarem o ressuscitar de uma cidade. E por aí fora. Mesmo a comprar ar, diversidade e poder escolher, são fundamentais.

Viva o Papel

•2023-12-24 • Deixe um Comentário

Trouxeram-me de Itália um exemplar do “Corriere della Sera”. Fundado em 1876, mantém as características de um grande jornal em papel. Em papel! Ó heresia face às modernidades que as pitonisas anunciam.
Em papel e, talvez por ser edição de sábado, com 56 páginas repletas de secções, crónicas e noticiário. A qualidade gráfica e a cor inundam-lhe a imagem, com a curiosidade (o JN fá-lo, nas pares) das páginas ímpares serem preenchidas com anúncios das mais variadas origens. Pelos vistos, os agentes económicos italianos continuam a apostar em publicidade no papel, em lugar de, como nos canais lusitanos, nos inundarem de anúncios na TV, com os telejornais interrompidos em simultâneo, estimulando o consumo. É por esta e outras razões – basta ver os jornais ingleses, norte-americanos ou franceses – que comparo as dificuldades da nossa imprensa, com a anunciada por certos futurologistas «morte do livro» e, obviamente, da leitura.
Para aumentar o meu desapontamento perante a situação (que põe em causa a essência do estado democrático, de que um esteio é a solidez da sua imprensa), dos jornais desta ditosa pátria a caminho da digitalização integral (mesmo onde não existe multibanco), o meu desgosto foi verificar que o “Corriere” publica suplementos regionais (neste caso o “Corriere del Mezzogiorno”). E mais: demonstrando a sua pujança, oferece ao público uma revista feminina (que despudor!) da maior categoria, a “Io Donna”. Eis a diferença entre os países que ainda lêem livros e jornais e os que só lêem em redes sociais e telemóveis e se arriscam a permanecer na 2ª. divisão.

Welcome

•2023-12-24 • Deixe um Comentário

Quem sabia do Porto era Júlio Dinis. Em “Uma Família Inglesa”, mostra o seu desenvolvimento segundo a nova ordem liberal: «Esta nossa cidade (…) divide-se naturalmente em três regiões distintas, por fisionomias particulares. A região oriental, a central e a ocidental. O bairro central é o portuense propriamente dito; o oriental, o brasileiro; o ocidental, o inglês.» Era o retrato do Porto burguês, de oitocentos, que marcaria a cidade actual.
Júlio Dinis apresentava-o a crescer para a periferia, deixando de ser uniforme e com novos territórios bem definidos. Tal evolução culminaria nas quinze freguesias que conformaram diferencialmente a cidade.
Perceber isto, pode evitar que no Burgo digam aos turistas como o “Finantial Times”, descrevendo algumas cidades: «Antes queria, que não estivessem aqui.» E destaca Amesterdão (com a campanha: «Stay Way», «Fique longe», digo eu) cuja economia (sem o turismo, mas dele derivada), entre 1995 e 2019, cresceu 132% e impôs, a partir de 2021, o limite de 20 milhões de visitantes. Outra é Veneza, cujo número de camas (49 000) para turistas é igual às dos habitantes. Ou Paris onde, em quarteirões habitados por 20 000 pessoas por Km2, os visitantes excedem 100 000!
Não vivemos no Porto tais situações mas, para evitar (como em Amesterdão, no «red district») que, entre a Praça e a Ribeira, circulem 900 000 pedestres por semana, temos de nos precaver. E oferecer uma cidade, em todo o seu território. Das Areias e da Asprela, até à “She Changes”. Se por cada quarto de hotel forem criados dois para os portuenses, podemos dizer ao mundo: «Welcome».

Fretes

•2023-12-24 • Deixe um Comentário

Em 1958, os EUA lançam no espaço o satélite Explorer 1 e vendem os primeiros discos estereofónicos, a URSS lança o Sputnik 3 e é eleito o Papa João XXIII. Salazar rejeita Craveiro Lopes, escolhe Tomás para as eleições presidenciais e surge, no Porto, com enorme entusiasmo a candidatura de Humberto Delgado. Obviamente Tomás venceu as eleições, desencadeando, país fora, uma onda de contestação. O Bispo do Porto escreve a Salazar a carta que o levará ao exílio. O Governo lança o II Plano de Fomento, é inaugurado o Hospital de S. João e a cidade recebe a Rainha Isabel II.
Com o mundo a mudar, em 4.10.1958, o Comandante da PSP do Porto concedia aos pais de uma amiga minha licenças para «Moço de Fretes», na Praça Filipa de Lencastre. E regulamentava a “Tabela de Preços” dos carregos. Na 1ª. zona, do Infante à Batalha, os pesos com mais de 30kg custavam dez escudos e os inferiores cinco. 2ª.: de Massarelos à Estação de Campanhã, vinte e dois e meio e dez escudos. 3ª.: da Fonte da Moura ao Esteiro de Campanhã, quinze escudos e sete e meio. Era proibido «cobrar quantias superiores às constantes da tabela, sob pena de 20 escudos de multa e respectivos adicionais.»
Quem achar que o mundo dantes era bom e agora está um caos, que as pessoas eram todas felizes, etc., imagine-se a transportar 30 ou mais kg de peso às costas, de Filipa de Lencastre a Paranhos ou Ramalde e compreenderá não haver pretéritos perfeitos. O simples facto de licenciar humanos como bestas de carga era uma ofensa à sua dignidade. E com todos os defeitos dos nossos dias – e há muitos – actos destes já não se aceitam.

Finalmente

•2023-12-24 • Deixe um Comentário

Passei em S. Bento e, do lado Sul da Estação, vi guindastes e obras em curso. Depois de meses ou anos de polémicas, opiniões, pareceres e críticas sobre a construção do Mercado Time Out naquele local, vemos o projecto avançar. Finalmente.
Em tempos recuados ia com frequência aos armazéns da Estação, na Rua da Madeira, onde levantava encomendas, trazidas do Douro ou de Alfarelos, pelo comboio. Desde a perda dessa utilidade ferroviária, passei a considerar o local, juntamente com o do lado da Rua do Loureiro, como inúteis para a sua envolvência, estética e arquitectonicamente indignos da qualidade do edifício de S. Bento que, de resto, nunca chegou a ser construído em toda a extensão, até ao morro do túnel (outra discrepância construtiva é visível na notável cobertura das gares, que remata muito antes do túnel).
De qualquer forma, ainda bem que o espaço dos armazéns dará origem a algo que valorize social, económica e culturalmente a Baixa do Porto (tal como sucedeu noutras cidades). E talvez possa constituir o motor para o renascimento e a requalificação da magnífica Rua do Loureiro, assassinada pelo despovoamento e a extinção forçada do comércio que a caracterizava.
Ainda bem que a obra avança e possa regenerar o degradado edifício da antiga Fábrica de Guarda-Sóis, nas traseiras de Cimo de Vila. E que, do lado Norte da Estação, surja um ermpreendedor com imaginação para transformar aquele buraco disfuncional da Rua da Madeira, em algo que qualifique estes espaços de um Porto perdido no passado que passou e se há um século constituía o melhor possível, hoje nos envergonha.

Dragagens

•2023-12-24 • Deixe um Comentário

Há semanas, apareceu no Douro uma draga, munida de guindaste e enorme apetrecho para extrair areia do fundo do rio. Mergulho a mergulho, ia limpando o que estava a mais para a navegação e, quando enchia o porão, despejava-o a Sul da Barra. Operava de dia e à noite encostava no cais da Ponte da Arrábida. Mas o ritmo não seria suficiente para desassorear o rio.
Apareceu então uma draga que não só recolhia a areia como a aspirava, dia e noite, sem parança, entre Sobreiras e o Ouro, e despejava-a no Atlântico. Mas, tal como apareceu, esta draga desapareceu.
Descobri depois as razões do afã, quando anunciaram o Dia da Marinha e a vinda ao Porto do navio-escola Sagres e da fragata D. Francisco de Almeida. E percebi: era preciso preparar o rio para que navegassem seguramente. E vi-os passar com certa emoção.
De qualquer modo, como o episódio demonstra o respeito com que a Armada continua a ser vista, devíamos aproveitar a lição e sugerir um Dia da Infantaria, com Desfile de tropas e veículos na VCI. Seria a maneira de desviarem o trânsito de pesados para a CREP e ali ficar para sempre. Outro Dia seria dedicado à Engenharia Militar que, preparando o Desfile, poderia, com competência, «arrumar» o caos da Circunvalação.
A mesma Engenharia, associada à Marinha, organizaria um Desfile entre Porto e Gaia, construindo uma ponte pedonal tecnologicamente avançada sobre o Douro. Obras que, contrariamente à areia que, um dia destes, volta a assorear o rio, seriam definitivas. E assim o Burgo, infinitamente agradecido, ficaria rendido à importância das Forças Armadas para o nosso progresso.

Dos Artistas

•2023-12-24 • Deixe um Comentário

Os artistas de rua estão na ordem do dia. Há quem goste e quem não goste deles, mas uma coisa é certa: sempre fizeram parte do ambiente da cidade. Até nos tempos da Outra Senhora, que não gostava de convivências.
De catraio, na Vitória, habituei-me a admirá-los (sobretudo músicos, a quem dedico especial devoção). Ao pé da porta, a Cordoaria era o lugar onde, por excelência, paravam os artistas. Ali me extasiava com os Robertos (especialmente quando o diabo era desancado), e os circos pobres, de pai, mãe e filhos. O pai tocava e a mulher, de saia curta e pernas magríssimas, fazia contorcionismo e equilibrismo com os filhos. Às vezes, o pai vestia de palhaço, enquanto um miúdo pedia esmola, de copo na mão. Eram a dor, a ternura e o desespero. E havia os artistas das cartas, que liam o futuro. E os ilusionistas.
Dos músicos («ceguinhos», de acordeão, eram vários), o mais impressionante inventou um estranho vibrafone com garrafas penduradas de um «charriot», cheias de água em vários níveis, que produziam diferentes sons interpretando músicas conhecidas. Era um génio e vivia em Gaia, num barraco! E dos artistas faziam parte os propagandistas (como o célebre Machado), que vendiam de tudo, com discursos delirantes.
Por solidariedade para com os que trouxeram à minha infância momentos tão felizes ajudo, incentivo, aprecio, ouço e, muitas vezes, entusiasmo-me com os artistas de rua. Sem eles, a cidade era mais triste, solitária, sorumbática, indiferente e, sobretudo, desumana. Em nome da alegria, da criatividade e do prazer que nos concedem, apoiá-los é um compromisso cívico.

Do Cerco

•2023-12-24 • Deixe um Comentário

Nunca me cansarei de evocar o Cerco do Porto, entre 1832 e 33, pelo exército Absolutista, como, porventura, aquele em que a cidade melhor afirmou a determinação na defesa da Liberdade e da Democracia.
E os nomes de algumas ruas são marcas indeléveis daquele período. Por exemplo: um Edital do Município, de 1838, considerando que «devendo a firmeza, denodo e determinação com que os portuenses valorosamente resistiram ter uma inscrição que transmita à posteridade tantos sofrimentos», atribuía aquela designação à Rua da Firmeza. Ainda eufórico, em 1839, o Município rebaptizaria uma praça com o nome de Alegria.
O topónimo mais expressivo é o da Rua do Heroísmo, onde se travou um combate decisivo na defesa do Porto. A vitória da cidade seria assinalada pela Rua do Triunfo (apagada da memória colectiva, tal como as da Lealdade, 25 de Março e Voluntários da Rainha).
Resistiram as ruas da Bataria, Glória, 9 de Julho, S. Brás e S. Paulo e a Praça do Exército Libertador. Da abnegação tripeira dão conta as ruas da Paz e da Piedade. E são evocados alguns vultos que defenderam a causa da liberalismo: Coronel Pacheco, Barão de S. Cosme, Visconde de Bóbeda, Parada Leitão, Marechal Saldanha, Joaquim António de Aguiar, Duque da Terceira, Visconde de Setúbal, Sá da Bandeira. A vocação liberal da cidade ainda mantém os topónimos 24 de Agosto, Liberdade, Restauração e Constituição.
A respeito do comportamento portuense durante o Cerco, conta Camilo Castelo Branco que Gervásio José de Barros saíra de casa, armado até aos dentes, gritando para os irmãos: «Rapazes! Aqui é fazer das tripas coração!»

Das Festas

•2023-12-24 • Deixe um Comentário

Pela boca de Gil Vicente, diz o Diabo: «Põe bandeira que é Festa!» Talvez por isso, o Bispo do Porto, Agostinho de Jesus e Sousa, publicou, em 1943, uma “Pastoral sobre Festas” que constitui, porventura, o mais violento libelo contra as festas populares. São 46 páginas de intransigência e intolerância. Entre outras pérolas: «o nosso povo está ainda muito atrasado na evolução do estado de selvagem para o de homem civilizado. Ao nosso povo o que agrada é o batuque dos nossos pretos da África (P.14). E: «constituindo os arraiais (…) grave perigo para a imoralidade e desprestígio para a religião, não se pode falar de direitos para os fazer (P.20). Entre as 43 “Disposições Disciplinares” enunciadas, na 31ª. diz: «É rigorosamente proibido que as chamadas bandas musicais toquem nas igrejas (…)» Só lendo.
Desde então, a igreja mudou e, embora existam párocos responsáveis pelo ocaso de algumas Festas, a maioria reconhece-as como expressão da religiosidade popular. Só à conta dele, o Padre Jardim «ressuscitou» o S. Nicolau, o Sr. da Boa Fortuna e a Senhora do Ó e o J.N., há dias, no texto “Aliança entre a fé e a festa mantém romarias no Porto”, noticiava as da Senhora da Saúde, Santa Clara e Senhora de Campanhã. Em 1990 descrevi 20 na cidade e algumas ainda são o rosto da personalidade portuense. O saudoso Bispo D. António Francisco dos Santos, em visita aos preparativos da Festa mais pagã do Burgo católico, a romaria de S. Bartolomeu, disse-me: «Sobre estas coisas devemos manter uma perspectiva inteligente.» (Recomendação que deixo a párocos, autarcas e alguns ditos cultos.)