Com Outro Olhar

Da cidade existem as imagens óbvias. As imagens da realidade habitual, de significado imediato, que não deixa margens à subjectividade (escorregadia, incontrolável, mas quase sempre fascinante) da interpretação e à fantasia do segundo sentido. Ou terceiro, ou quarto. Tantas quantas as ressonâncias que fazem ecoar, em qualquer parte, dentro de nós.

Imagens óbvias da cidade, repetidas como marcas de identificação são, por exemplo, as da Ribeira, com as pontes (pênsil e, depois, Luís I) de que existem milhares de estampas, fotografias, ilustrações, gravuras, fotogramas de filmes, desenhos, pinturas. O bilhete postal turístico, já que as imagens óbvias impregnam o nosso olhar com as marcas de um quotidiano estável, organizado ao longo do tempo (como a da Torre dos Clérigos, eleita a imagem preferencial dos portuenses). Desde sempre, desde que existe o mundo (desde que nascemos e apreendemos a cidade) a que os ligam afectos que estruturam a visão e a própria concepção sobre a vida.

Da vida, quero dizer, dos espaços onde nos movemos e da gente que neles vive. E assim, as imagens óbvias confirmam a espécie de catálogo de referências do nosso imaginário. As referências de uma realidade habitual: a cidade e os seus lugares, as ruas e as suas arquitecturas (em que já não reparamos de tão conhecidas), a Natureza na passagem dos dias. E, certamente, as referências de nós próprios nas relações com os outros.

Mas, oferecendo-se à nossa curiosidade, existem as «outras» imagens. As imagens inabituais, que nos surpreendem. As imagens alternativas dos bilhetes-postais, rompendo com os modos de ver preferentemente utilizados, que, não raramente, estilhaçam a nossa concepção fotográfica do quotidiano, porque são inesperadas que, muitas vezes, nem damos por elas e, por isso, deixamos escapar pormenores do real, tão importantes e significativos quanto as imagens que convencionamos aceitar como representativas da Cidade.

Porque as imagens inabituais são principalmente desafios, propõem um outro reportório de símbolos e, se calhar, outro código para interpretar o Porto, implicando outra leitura da cidade enquanto universo fragmentado em pormenores essenciais, instantâneos fugazes, contornos de coisas aparentemente imperceptíveis, luzes e claro-escuros quase imateriais. Por exemplo, ver o Porto assim: o catavento da Igreja de Lordelo, o castanheiro da esquina diante da Capela das Almas (e o seu fumo – e, se possível, o seu aroma), o presépio da Igreja dos Grilos, a porta arruinada da Fábrica dos Rebuçados Victória, o cão gordo, chinês que pára no Infante, a forma de sapato da Rua do Cativo, o bebedouro de animais da Rua do Souto, o Jardim Zoológico de plástico do muro da Mocidade da Arrábida, o lusco-fusco misterioso do Roleto, a assombração do Monte dos Judeus, o retrato do Manuel Tintim, em Campanhã, o ruído da água correndo do rio Frio, no Carregal, etc.

E depois, juntar estas e milhões mais de imagens espalhadas por aí e a partir delas reconstruir – como se fosse um puzzle – a realidade estilhaçada a que chamamos cidade, que espera de nós um gesto, atitude, vontade ou simpatia do descobrimento. E do reencontro.