Carnavais

Escrevia Ramalho Ortigão ser necessário «Destruir pela troça a idolatria das personalidades, é preciso acabá-las a tempo pela gargalhada (…).» E Proudhon, dirigindo-se à ironia como «verdadeira liberdade», dizia: «És tu que me livras da ambição do poder da escravidão dos partidos, da admiração das grandes personagens, das mistificações da política.»

De facto, como nas “Selecções”, perante os carnavais a que assistimos, “Rir é o melhor remédio”. Rir e resistir pelo humor. Cultivar o último refúgio onde a inteligência ainda pode acoitar-se: a ironia. Utilizar o riso como arma de sobrevivência. Fazíamo-lo no tempo da outra senhora e fazêmo-lo agora.

Dantes, contra os ridículos salazaristas. Agora contra os desvarios do nacional-centralismo, cada vez mais devorista, a avaliar pelo regabofes para sustento do «grande ventre da Capital» – dizia Ramalho, acrescentando: «vinde a nós, ó Provincianos!» E os provincianos não têm outro remédio: se querem emprego, prémios, promoções, avenças e descanso, rumam a Lisboa («Meia Lisboa vive a descansar: faz do descanso não só um direito, mas um estado», idem). A continuar assim, em 2020, só Lisboa emprega e o resto estará reformado ou na cadeia. Dissipados os “fumos da Índia”, o “ouro do Brasil”, os Fundos Europeus, resta à Capital explorar o país.

Noticiaram os jornais que o braço armado do centralismo no desporto, consubstanciado numa colectividade lisboeta, para inaugurar a sua secção de canoagem, veio a Crestuma e levou a Campeã europeia e mundial do escalão júnior. Aprendam os provincianos como se faz. O centralismo é que defende os recursos nacionais. Como também escreveu Ramalho – sendo o Chiado a «pastagem predilecta da ociosidade lisbonense» -, o mais prático para a Capital é vir às compras. Doravante, pois, tudo é possível. Sustentando-se à «custa do Estado, ou servindo-o ou explorando-o» (idem), os predadores preparam-se para devorar o que resta. Acautele-se, pois, a equipa de pólo aquático do Salgueiros – qualquer dia compram-na. O mesmo pode acontecer ao Sporting de Espinho, no vólei, ao F.C.P. no hóquei e no Andebol, à Ovarense, no básquete – e por aí adiante. Tudo quanto mexa, corre o risco de ser sugado.

Mas não só. Como o apetite centralista é insaciável, levarão para Lisboa os campeões de matraquilhos, berlinde, pião, malha, bisca lambida, sueca, vermelhinha, dominó, damas, loto, rapa, burro, voltarete, copas, tiro aos pratos, corrida de sacos, bilhar russo, lerpa, glória, macaca, sameira, etc., etc.

Para que a absorção fique completa, poderá abranger desportos mais atléticos como dança das cadeiras, tango, rumba, cha-cha-cha e valsa. E, como «As leis feitas em Lisboa são, como toda a gente sabe, uma coisa tão subalterna para a atenção dos legisladores que na maioria dos casos dentro do próprio grande santuário dos Cortes ninguém as entende (…)» (idem), um dia destes, não será de espantar a saída de um Decreto proibindo a qualquer indígena ganhar o Totoloto e o Euromilhões, a menos que resida na Capital ou seus subúrbios. É que os estômagos de lá, a avaliar pelo apetite insaciável de que dão provas, são muito maiores do que os nossos. (Enfim, rematando ainda com Ramalho: «Como nada mais sabeis fazer, dai vivas à Carta, e tocai o hino!»)