Regressar à Baixa

Tenho para mim que a maior agressão ao carácter urbano do Porto foi o despovoamento e perversão da sua zona central – chamemos-lhe Baixa – através da extinção de actividades comerciais, o encerramento de espaços de lazer (designadamente cafés e cinemas) e a centrifugação dos moradores para a periferia. O que se passou nos últimos 40 anos, em matéria de decadência deste espaço identificador de muito do melhor da cidade burguesa e liberal, atinge os contornos de verdadeira tragédia cívica. Comparados com ela, atentados como a Avenida da Ponte e a demolição do Palácio de Cristal são gotas de água. E mesmo essa calamidade constituída pela 3.ª muralha – de asfalto e monóxido de carbono – chamada VCI não se compara, em custos sociais, culturais e económicos, com o abandono e destruição da Baixa.Os únicos inocentes neste pesadelo são, certamente, os portuenses que perderam empregos, habitações, referências e instituições. Muitos proprietários viram-se afectados pela desvalorização e degradação dos edifícios e muitas famílias viram-se compelidas a partir por ausência de políticas de regeneração urbana. Os números conhecidos do despovoamento e da dissolução da Baixa em fogos devolutos, comércios encerrados e escritórios desocupados são, por si só, um libelo acusador contra os responsáveis que, em ditadura, lançaram as bases desta conspiração contra a cidade, e em democracia não promoveram, no tempo devido, esforços, planos e acções para uma estratégia de reabilitação da urbe visando o seu renascimento. Dos cafés desaparecidos, um dos mais emblemáticos, era o Excelsior. Inaugurado em 1 de Janeiro de 1920, seria classificado como “o mais rico da Península”. Ainda o conheci e não diria tanto, mas quase. Era, de facto, refulgente de brilhos, requintado, com a rutilância daqueles ambientes expressivos de apurada cultura comercial. Além do resto, possuía salão de bilhares, no primeiro andar. O edifício conheceu três projectos o primeiro, de 1916, com salões no rés-do-chão e primeiro andar e habitações nos seguintes, foi requerido por Estela Spratley, com alterações em 1917, do arquietcto Eduardo Alves, e em 1920, curiosamente destinadas a uma Excelsior Seguros, mas provavelmente já para o café. Do seu esplendor sobreviveram, além da frontaria, pormenores interiores como espelhos, mármores e estuques restituídos ao nosso olhar na nova loja recentemente inaugurada na Baixa do Porto.
O facto reveste um significado especial e paradigmático, que gostaria de assinalar. Em primeiro lugar, trata-se do primeiro caso em que a dependência de um banco, em pleno coração do Burgo, se reconverte em estabelecimento comercial. É, de certa forma, um ajuste de contas com a História o vencedor de ontem perde a batalha da contemporaneidade com o elo mais fraco. Mas também não podemos embandeirar com a aparente vitória da memória sobre o esquecimento, que só acontece porque a decadência desta parte da cidade é tal, que o capital financeiro emigrou para bandas mais favoráveis. Em segundo lugar, no espaço do Excelsior, restituído à sua vocação comercial, instala-se a loja de uma firma, cujo percurso exemplar representa o antigo espírito empreendedor e dinâmico da burguesia da Baixa. Em 1956, Manuel de Sousa Ribeiro, em sociedade com os irmãos, inaugurava na Rua de Sá da Bandeira uma papelaria comercializando também material de Belas Artes. Ali se manteve até 1970, estabelecendo-se, então, num andar da Rua de Sampaio Bruno, com a firma em nome individual de M. Sousa Ribeiro. Comerciante portuense da velha cepa, à custa de tenacidade, perseverança e honradez, conquistou credibilidade e prestígio, tornando-se referência nacional como importador e distribuidor dos materiais com que tinha iniciado a actividade. Também à boa maneira dos burgueses de outrora, administrou a firma até aos 90 anos. Infelizmente já não se encontra entre nós para assistir à concretização de um desígnio notável, porque o regresso da loja desta firma à rua que a viu nascer comprova, afinal, que os projectos comerciais vindos do passado, quando solidamente estruturados no terreno e sabendo ler e adaptar-se aos sinais dos tempos, resistem à erosão dos anos e são capazes de conquistar o futuro.
Trata-se de um simples passo, de um gesto singular na vontade de, acertando as agulhas com a modernidade, a reconciliar com a tradição. Mas que melhor exemplo de confiança no ressurgimento da Baixa do Porto poderíamos encontrar? Oxalá a coragem da iniciativa frutifique e que esta parcela do Burgo, com tanta nobreza e qualidade urbana e arquitectónica, readquira a categoria que lhe foi subtraída. Isto não é um acto de amor à cidade?

(…) os projectos comerciais vindos do passado, quando solidamente estruturados no terreno e sabendo ler e adaptar-se aos sinais dos tempos, resistem à erosão dos anos e são capazes de conquistar o futuro.

Helder Pacheco, in JN 01.11.2007